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quarta-feira, 17 de julho de 2013

Ciro Flamarion Santana Cardoso: ao professor e historiador marxista

Virgínia Fontes

A História está de luto: a história do Brasil, a história no Brasil, a história antiga, a história contemporânea, a história que produzimos em cada dia na vida social, a história refletida e pensada por alguns historiadores, a história que se faz nas ruas, a história comprometida com a luta social e com uma reflexão aguda e crítica. Perdemos há 15 dias, no dia 29 de junho de 2013 um dos nossos maiores historiadores, Ciro Flamarion Santana Cardoso.
Raros intelectuais tiveram uma vida como a de Ciro, totalmente dedicada à pesquisa e à docência. Leitor voraz, professor em tempo integral, dedicadíssimo aos cursos e à tarefa dupla e complexa de produzir e socializar conhecimento. Muitos desses cursos, aliás, se tornaram livros. Ciro preparava suas aulas meticulosa e minuciosamente, de tal maneira que os alunos dispunham de textos originais altamente qualificados sobre o tema trabalhado. E isso não apenas em cursos de mestrado ou doutorado, pois Ciro era rigoroso e generoso em todas as aulas que dava, sobretudo na graduação de História, onde atuou durante muitos anos. Não escondia seus novos textos: eles integravam plenamente sua vida docente, sua relação com os alunos, com seus colegas e com o mundo dos historiadores.
Numa época em que a pressão pela quantidade desdenha a qualidade e impede a reflexão crítica, Ciro nos ensinou a necessária dialética entre quantidade e qualidade: realizou uma produção de enormes dimensões, sempre com altíssimo nível de elaboração. Tendo como característica pessoal o profissionalismo e uma enorme exigência de qualidade, Ciro Flamarion não engrossou o coro dos que aderiram a uma história convertida em turismo temporal, em repositório de curiosidades ou descompromissada, na trilha de um mercado que tendeu a esvaziar a reflexão histórica de seus maiores desafios. Navegou na contramão da hiper-especialização e se dedicou a fundo a múltiplas questões, ultrapassando na prática as cercas que instauram quase cinturões de propriedade para certos temas ou períodos históricos.
Jamais atacou novidades, mas criticava duramente os novidadeiros, aqueles que enveredavam pelo primeiro caminho da última moda e, com o afinco dos recém-conversos, orgulham-se de desconhecer completamente o árduo percurso prévio, desqualificando-o de antemão. O meio historiador é sacudido de tempos em tempos por alguma moda que, como incêndio em pradaria, parece garantir um lugar ao sol para os mais rápidos aderentes. Para os que não sabem, o âmbito dos historiadores é uma área bastante competitiva em termos de carreira e de reconhecimento, e tais novidades, em geral aportadas do exterior por mãos bem treinadas, tornam-se rapidamente jargão repetido, até seu completo esgotamento. Entre o início gritante e a decadência silenciosa há tempo para consolidar algumas carreiras.
O mundinho dos historiadores, como em qualquer disciplina, convive com diferenças e divergências e elas são – ou deveriam ser – algo de corriqueiro. Como lembra Pierre Bourdieu – de quem Ciro Flamarion, aliás, não foi um adepto – a principal linha de fratura entre as ciências sociais é a que separa os que consideram que a sociedade é cindida em classes e os que consideram essa cisão inexistente. A mera adesão a um dos lados dessa permanente luta não garante por si só um trabalho de pesquisa melhor, mas define lados em permanente conflito, dentro e fora das universidades. O abandono das chamadas “grandes teorias”, que partem das grandes fraturas sociais estruturais – e suas razões – tende a gerar textos menos comprometidos com as questões sociais cruciais. Por vezes, gera pesquisas refinadas, de longo fôlego, com profundas marcas de erudição. Mas exatamente pelo aparente desinteresse e descompromisso com a luta que atravessa a vida social e demarca o próprio campo científico, também abre a brecha para que o compromisso se limite aos valores de troca dominantes, ou seja, o mercado (mercado editorial, mídia, etc.) e com seu equivalente interno ao campo, o “mercado do reconhecimento inter-pares” (publicações, viagens, convites, bolsas, etc.). Ciro tinha posição, não perseguia seus opositores e, ao contrário, abria intensos e fecundos debates. Não se pode dizer o mesmo com relação a muitas outras tendências teóricas que eliminam sem escrúpulos qualquer odor de marxismo, mesmo se discreto...
Essa postura de Ciro Flamarion se refletia também na sua atuação institucional. Defendendo uma profissão historiadora na qual seus trabalhadores sejam dignamente remunerados e tenham acesso pleno às condições de trabalho, ele procurou sempre estabelecer parâmetros igualitários para que isso pudesse ocorrer, refutando as propostas que, apoiadas imediatamente pelos mais rápidos e preocupados apenas consigo mesmos, desconsideram a necessidade de elaborar projetos coletivos, de assegurar direitos a todos. Participei de várias comissões na UFF juntamente com Ciro Flamarion e muito aprendi: não se tratava apenas de premiar os mais aptos, como muitas vezes era imposto tanto de cima para baixo, quanto ecoava nos corredores universitários em lutas intestinas ferrenhas. Admitia a existência de bons trabalhos em qualquer área teórica, mas não da forma apressada e exacerbadamente competitiva como alguns queriam. Envolvia considerar o conjunto das atividades docentes (ensino, pesquisa, extensão), e não apenas um parâmetro exclusivo, imediatamente mensurável.
Ciro defendia o estabelecimento de verdadeiras políticas, com a definição de critérios comuns, dignos e abertos, para que todos pudessem atingir a formação necessária, garantir uma docência de alto nível e realizar uma produção bibliográfica condizente. É preciso lembrar que, sob qualquer critério, Ciro Flamarion era sempre o mais produtivo. Jamais aceitou privilégios ou exigiu tratamento diferenciado – ao contrário, exercitou na prática de sua própria existência os critérios que defendia. Foi uma pessoa rara.
Se Ciro tinha clareza do lado em que estava nesse complexo conflito que atravessa nossa vida social e o mundo dos historiadores, sua principal atuação política ocorria no cotidiano do trabalho docente e intelectual. Era um leitor atento e arguto de todas as tendências historiográficas e teóricas e nunca se limitou a estudar apenas autores de sua própria convicção. Por isso, como apenas grandes pensadores e exímios profissionais são capazes, Ciro não só cultivou como afiou o viés crítico e o debate teórico permanente, sólido e rigoroso, enfrentando um a um todos os autores e modismos que se abateram sobre a história e nunca o fez de maneira aligeirada. Procurava compreender o que de fato havia de novo, descartar o efêmero e enfrentar os verdadeiros problemas intelectuais, teóricos e historiográficos, sem perder de vista que ser historiador não deve ser nem uma carreira burocrática nem uma louca corrida pelos lucros mercantis: ser historiador envolve enorme compromisso com a emancipação humana em todos os âmbitos da existência, o que envolve a capacidade de pensar crítica e livremente e a exigência da produção de relações humanas pautadas na igualdade social.
Enfrentou claramente os modismos, sempre produzindo sólidos artigos combatentes, que nunca se limitaram a comentários passageiros, ajudando a consolidar uma tradição historiadora crítica e exigente. Como raros, Ciro Flamarion sabia que não era o período estudado o que definia a contribuição dos historiadores, mas a questão enfrentada, assim como a forma de abordá-la; era a interrogação que presidia a pesquisa, gestada a partir de uma densa básica teórica e de profundo estudo historiográfico, quem abria a possibilidade do novo. E o novo, na maioria dos casos em que é fundamental, não é novidadeiro.
Ciro Flamarion foi um intelectual marxista em sentido pleno: era um estudioso da teoria, um pesquisador no âmbito do empírico, do teórico e do historiográfico, um elaborador de profundas reflexões históricas, teóricas e metodológicas. Não era um marxista de circunstância e, por conhecer a fundo as múltiplas teorias históricas, sabia pertinentemente que nenhum outro ambiente teórico abria tantas possibilidades de explicação e de compreensão do mundo, em diversas áreas do conhecimento. Melhor do que ninguém, Ciro sabia que a história é um processo complexo e que descortinar as grandes contradições e questões, tarefa central dos historiadores, é uma das condições da luta social. Desconhecer a causa teórica que Ciro abraçou toda a sua vida falsifica sua biografia e sua coerência como historiador, como professor e como pessoa.
Além do historiador, do intelectual marxista e combativo, perdemos um homem raro. Ciro foi um homem de uma cultura e erudição raras, que gostava e conhecia bem literatura (ele adorava ficção científica), música, cinema, ópera, gastronomia. De enorme sensibilidade, lembro-me de pequeno episódio que me impactou. Almoçávamos juntos, como fizemos algumas vezes, e conversávamos sobre literatura. Ele comentou que havia relido o conto – integral – de Andersen, A pequena sereia. Comentei que esse conto marcara enormemente minha infância. A sereiazinha, para adequar-se a um ser humano por quem se apaixonara, aceita uma vida inteira de enormes sacrifícios. Ela deveria ser amada por ele e, ainda assim, caminharia sobre agulhas. Se o amor dele lhe faltasse, ela se converteria em espuma do mar. Lembro-me, criança, de me deparar com o sentido da injustiça. Mais tarde vim a perceber que o conto traduzia para mim, de maneira refinada e extremamente dolorosa, o percurso socialmente sugerido para as mulheres. Ciro estava com os olhos cheios d'água e comentou que a cada vez que lia ou pensava nesse conto, ficava embargado de emoção.
Ciro gostava de boas coisas. Gourmet (conhecedor de gastronomia) mas, sobretudo gourmand (guloso), trocava receitas e dicas de culinária e de vinhos; reconhecia uma cantora de ópera, ouvindo a melodia que tocava em minha casa, através do telefone no qual falávamos. Gostava de uma boa conversa. Quando vivi no exterior, era uma honra e uma felicidade receber suas cartas, pois nelas reencontrava Ciro Flamarion na íntegra: suas cartas me explicavam a situação brasileira, as condições da universidade, os grandes temas então em voga por aqui, me traziam suas novas pesquisas e suas interrogações.
Este homem enfrentou, com um senso de humor e uma leveza por vezes até desconcertantes, enormes desafios de saúde. Apesar do desconforto de muitas das operações a que foi submetido e que afinal resultaram na perda da visão de um dos olhos, Ciro ficou pouquíssimo tempo afastado das salas de aula. Suas licenças médicas duravam o tempo mínimo necessário para o restabelecimento e a convalescença ocorria em paralelo à sua plena atividade docente. Não se queixava e, ao contrário, fazia piadas e brincadeiras com o seu sofrimento. Dizia, por exemplo, que havia se tornado, de fato, um semiótico... Fui visitá-lo após uma dessas cirurgias e ele, mal conseguindo falar, me fazia rir.
Tive a sorte de conviver com Ciro como colega de Departamento, como mestre e como amigo, com a proximidade possível com um intelectual daquele porte. Sua perda é enorme para todos os que têm um sentido de profundo compromisso com a história que se vive, com a que procuramos construir e com a história que precisamos escrever. Ciro, você faz muita falta.

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